Direito Digital, tributação e apostas eletrônicas: breve comentário à Lei n. 14.790 de 29 de dezembro de 2023



Direito Digital, tributação e apostas eletrônicas: breve comentário à Lei n. 14.790

(Imagem: direitojá/Reprodução)


*Escrito pelo Professor Isaac Rodrigues Cunha 


A relação dos seres humanos com os jogos de apostas é tão antiga quanto controversa, havendo quem os condene por motivos religiosos, psiquiátricos, econômicos e mesmo jurídicos. Dessa feita, entre a paixão e as aversões, os jogos de azar chegaram ao século XXI com a relevância que a economia digital galgou, sendo substituído o famigerado “jogo do bicho” pelas apostas esportivas eletrônicas, as e-bets.

Se para o cristianismo o jogo é condenado, em diversas passagens, como o dinheiro que não veio do “suor do rosto” (Gênesis 2:15) ou  não gasto com “pão” (Isaías 55:2), a Psiquiatria classifica o jogo compulsivo como transtorno mental não relacionado a substância (APA, 2014, p. 585). A Organização Mundial de Saúde, no mesmo sentido, classifica como doença o assim chamado “jogo patológico” – CID 10 V – F63.0 (WHO, 2019, online).

Além de tais preocupações, a relevância econômica do jogo e a clandestinidade por meio da qual este passou a ser exercido reclamam atenção também do direito, tendo sido o Decreto n. 21.143/1932, nos primeiros anos da Era Vargas, um dos primeiros normativos republicanos a regulamentar a matéria. Seguiu-se a previsão dos jogos de azar no art. 50 da Lei das Contravenções Penais (Decreto-Lei n. 3.688/1941), no Decreto-Lei n. 9.215/1946 e no  Decreto 204/1967.

Em 2015, porém, percebeu-se já uma tentativa de adequar a prática à modernidade digital, com a nova redação conferida, pela Lei n. 13.155 daquele ano, ao  § 2º do  mencionado art. 50 da LCP, acrescentando a expressão “ainda que pela internet ou por qualquer outro meio de comunicação” (Brasil, 2015, online). Naquela ocasião, já se vislumbra a expressão – e a ilegalidade – das apostas esportivas, que se intensificaram especialmente após 2018.

Isso porque, convertida da Medida Provisória nº 846, de 2018, sobreveio a Lei n. 13.756, de 12 de dezembro de 2018, criando nova modalidade de loteria no país, quais sejam as assim chamadas “apostas de quota física”, que correspondem às apostas esportivas online. O paradigma anterior reconhecia apenas loterias de caráter público/estatal. Em 2018, as apostas esportivas passaram a também serem consideradas loterias.

Ocorria, porém, que tal novidade não vinha acompanhada de efetiva regulamentação das atividades, sendo certo ainda que grande parte dos sítios de apostas esportivas eram sediados no exterior, dificultando bastante a sua tributação, fiscalização e responsabilização em caso de danos aos consumidores/jogadores. Isto apesar de tramitar, desde 1991, o Projeto de Lei n. 442, além de outros mais recentes, igualmente visando a regulamentação das apostas privadas, isto é, alheias às loterias públicas.

Sobreveio, pois, a Lei n. 14.790, de 29 de dezembro de 2023, que regulamentou a matéria e trouxe, entre seus dispositivos, com maior destaque, a(s) possibilidade(s) de tributação da atividade. Desde as discussões que permearam o Projeto de Lei n. 3.626/2023, que reverberou na referida lei, a arrecadação que poderia ser galgada com a tributação das e-bets despontou como maior argumento a favor da regulamentação.

Nesse sentido, diversos dispositivos da Lei n. 14.790/2023 dão conta especialmente da prevenção à lavagem de capitais e à evasão de divisas, como é o caso do art. 8º, II e do art. 25, I e II.  Ademais, a mesma lei também acrescentou o art. 32 à Lei n. 13.756/18, prevendo agora uma “Taxa de Fiscalização”, devida pela exploração comercial da loteria de apostas de quota fixa, incidindo mensalmente sobre o produto da arrecadação da casa de apostas.

Referido tributo decorre claramente, como denota o próprio dispositivo, do exercício do poder de polícia destacado no art. 77 do Código Tributário Nacional (Lei n. 5.172/1966). Além disto, a Lei também assinalou repasses a serem realizados, deduzidos igualmente da arrecadação do operador de loteria esportiva, no total de 12% (doze por cento), destinados à educação, segurança pública, esporte, seguridade social, turismo, saúde, entidades da sociedade civil etc.

Além disso, o art. 31 da Lei n. 14.790/23 assinala expressamente que o valor líquido obtido na aposta esportiva será alcançado pelo Imposto de Renda, segundo uma alíquota de 15 % (quinze por cento). O § 2º do referido dispositivo garantia a isenção do IR sobre prêmios líquidos abaixo da faixa de isenção – atualmente em 2 (dois) salários-mínimos, conforme Medida Provisória n. 1206/2024, publicada na última terça-feira, dia 06/02/24. O referido parágrafo, porém, foi vetado.

Ademais, não obstante se levantem ainda contra tal arrecadação, alegando bis in idem tributário incidente sobre os prêmios, verifica-se que o Brasil finalmente passa a considerar a realidade que é (e sempre foi) das apostas, substituindo a sanção penal (por meio da LCP) pela “sanção” tributária. Fato é que a atual legislação se aproxima do que já vem sendo feito há tempos nos países desenvolvidos. Portugal, por exemplo, disciplina a questão com uma Lei do Jogo, nome dado ao Decreto n° 14.643, desde 1927 (Canotilho, 2007).


Em síntese, verifica-se que a Lei n. 14.790/2023 traduz uma preocupação já sentida no cenário de virtualização da economia: a de que não se pode admitir a existência de paraísos fiscais on-line, intangíveis pela tributação, ainda que economicamente significativos (Oberson, 2020). A preocupação do Direito Digital, nesse sentido, ao envolver a tributação, é justamente de garantir um tratamento fiscal isonômico, como bem preceitua o art. 150, inciso II, da Constituição Federal.


*Isaac Rodrigues Cunha, Doutorando (2020), Mestre (2017) e Bacharel (2014) em Direito (UFC) Professor Universitário (UNICHRISTUS/UNINASSAU/INBEC). Assessor Jurídico Especial (MPCE). Pesquisador Associado (CONPEDI). Membro Consultivo (CEJ-OAB/CE). Advogado.



REFERÊNCIAS:

AMERICAN PSYCHIATRIC ASSOCIATION. Manual diagnóstico e estatístico de transtornos mentais: DSM-5. 5. ed. Porto Alegre: Artmed, 2014.

BRASIL. Decreto-lei nº 3.688, de 3 de outubro de 1941. Lei das Contravenções Penais. Rio de Janeiro: D.O.U., 1941. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del3688.htm. Acesso em: 10 jan. 24.

BRASIL. Lei nº 13.155, de 4 de agosto de 2015. Estabelece princípios e práticas de responsabilidade fiscal [...] Brasília: D.O.U., 2015. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2015-2018/2015/Lei/L13155.htm. Acesso em: 27 jan. 24.

BRASIL. Lei nº 13.756, de 12 de dezembro de 2018. Dispõe sobre [...] a promoção comercial e a modalidade lotérica denominada apostas de quota fixa. Brasília: D.O.U., 2018. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2018/lei/L13756.htm. Acesso em: 2 jan. 24.

BRASIL. Lei nº 14.790, de 29 de dezembro de 2023. Dispõe sobre a modalidade lotérica denominada apostas de quota fixa [...]. Brasília: D.O.U., 2023. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2023-2026/2023/lei/l14790.htm. Acesso em: 07 fev. 24.

CANOTILHO, J. J. G. O imposto especial sobre o jogo no contexto jurídico-constitucional fiscal. In: MARTINS, I. G. (Coord.) O tributo: reflexão multidisciplinar sobre sua natureza, Rio de Janeiro: Forense, 2007, p. 9-21.

OBERSON, Xavier. Taxing robots. Helping the Economy to Adapt to the Use of Artificial Intelligence. Cheltenham, UK: Elgar, 2020.

WORLD HEALTH ORGANIZATION. International Classification of Diseases. The global standard for diagnostic health information. 10h Revision. United Nations, Whorld Health Organization, 2019. Disponível em:  https://icd.who.int/browse10/2019/en#/F63.0. Acesso em: 10 jan. 24.



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