Jardins circulares senegaleses podem conter o avanço do Saara



Jardins circulares senegaleses podem conter o avanço do Saara
Grande Muralha Verde Kanel, Matam, Senegal. (Foto: reprodução Instagram @ecogazzetta/ Terra à Vista-Uol/Reprodução)


Quando a harmonia entre dois vizinhos anda balançada, por motivos internos ou externos, é na fronteira que isso é mais sentido, seja na calçada que você divide com a vizinha que teima em reclamar dos latidos do seu cachorro seja nas tensões que envolvem crises migratórias, tráfico de drogas e milícias rivais, como entre Colômbia e Venezuela. Muitas e muitas vezes, a própria fronteira é objeto de disputa, de Armênia vs. Azerbaijão a Zâmbia vs. Zimbábue. 


Em 1989, uma pequena guerra na África Ocidental teve um pouco de tudo isso. Seis anos antes, a Mauritânia iniciou um programa estatal de agricultura que prejudicou pequenos produtores rurais no país e no Senegal, do outro lado de um rio que também se chama Senegal. 


Esses países são duas ex-colônias francesas, ambas de imensa maioria islâmica. Mas após a independência elas seguiram caminhos diferentes. A Mauritânia reforçou as ligações árabes (hoje virtualmente toda a população é muçulmana). Já Senegal manteve conexões com o mundo francófono e tem uma minoria cristã. 


O distanciamento ficou mais abalado quando um período de secas no Sahel, a zona de transição entre o deserto e a savana, apertou ainda mais o cerco aos camponeses nos dois lados da fronteira.


Quando a realidade é essa, vale qualquer desculpa para o pau começar a cantar. Até pasto. Disputas em torno de áreas de pastoreio nas margens do rio levaram à ruptura diplomática e, depois, à guerra. Em dois anos, o conflito deixou algumas centenas de mortos e muitos milhares de refugiados.


Baobá, a famosa árvore africana, no deserto senegalês. (Foto: iStockphotos/Terra à Vista-Uol/Reprodução)



O INIMIGO AGORA É OUTRO 


Hoje, a fronteira entre os dois países é foco de um novo conflito, contra um inimigo comum. Nos últimos meses, jardins circulares têm surgido na área, o que poderia dar a impressão de que a luta é contra alienígenas. Mas não se trata de um filme de M. Night Shyamalan. Os jardins são uma nova arma para tentar conter a desertificação que ameaça todos os países do Sahel.


(Foto: Reprodução/Terra à Vista-Uol/Reprodução)



Mais de dez jardins circulares, chamados de tolou keur, foram implementados nos últimos meses. Eles funcionam como uma mistura de pomar e farmácia naturais. Os círculos interiores têm plantas medicinais. Nos intermediários, mamão, limão, caju, manga e outras frutas. Nos exteriores, baobás e mognos africanos providenciam nutrientes às plantas, sombra aos humanos e proteção contra os ventos que arrastam a areia do deserto.


Todas as espécies são resistentes às intempéries do clima. Além disso, o formato circular permite que as raízes cresçam em direção ao centro, o que facilita a retenção de água e a compostagem, explica a agência de reflorestamento do Senegal.


(Foto: reprodução Instagram @ahmedlatouri/Terra à Vista-Uol/Reprodução)



O grande fator que tornou a iniciativa bem-sucedida até o momento, segundo especialistas, é que ela engaja as comunidades locais a participar. Esse seria o grande diferencial em relação a outras ações da chamada Grande Muralha Verde, projeto que ambiciona barrar o avanço da desertificação com uma faixa de 8 mil quilômetros de florestas do Senegal, às margens do Atlântico, ao Djibuti, no Mar Vermelho, do outro lado do continente.


O problema é que o projeto da União Africana, iniciado em 2007, atingiu apenas 4% da ousada meta de cobrir 100 milhões de hectares de árvores. A Grande Muralha Verde é um colosso que envolve a política e o aparato burocrático de diversos países e ainda incita debates científicos sobre as principais causas da desertificação (variações climáticas, excesso de áreas de pasto, represas, conflitos étnicos, grandes secas, ventos, chuvas) e a melhor maneira de combatê-la. 


(Foto: reprodução Instagram @ecolibri.senegal/Terra à Vista-Uol/Reprodução)



Enquanto isso, os senegaleses arregaçaram as mangas e investiram em algo prático. Aly Ndiaye, engenheiro agrícola que participou da criação do tolou keur, disse à Reuters que o objetivo era fazer jardins menores, produtivos, permanentes, sequenciais e úteis às comunidades, em vez de uma longa e perene linha de árvores.


Curiosamente, foi a pandemia que criou o cenário para o desenvolvimento do tolou keur. No ano passado, o Senegal fechou as fronteiras para conter a disseminação do coronavírus – o que parecia estar ajudando: o país teve um pico de apenas 160 casos diários em 2020, bem diferente de 2021, quando passou dos mil casos diários em julho.


Com tudo fechado, as comunidades rurais foram as mais expostas, pois dependiam mais de alimentos e remédios vindos do exterior. Foi aí que a agência de reflorestamento viu que era necessário incentivar um programa que as tornasse mais autossustentáveis, segundo a Al Jazeera.


Nem todos os jardins estão prosperando. Em alguns, a desertificação não parece ter freado. Mas em Kanel, por exemplo, tem dado certo. Os cuidadores precisaram só dar um jeito de lidar com os roedores. Um muro e cães mantêm as pragas afastadas da hortelã e do hibisco.


Mudanças climáticas influenciam a política, queiram ou não os negacionistas. A seca ajudou a estourar uma pequena e esquecida guerra no Senegal nos anos 1980. E uma seca nos anos 2000 pavimentou o caminho para a maior guerra do mundo na década passada, na Síria. 


A iniciativa no Senegal pode mostrar em escala internacional o que a turma dos "pais de planta" sabe bem. Jardins trazem paz.



Fonte: 

- Terra à Vista!  - Uol.



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