Arquiteturas nômades: se deslocar sem sair de casa



Arquiteturas nômades: se deslocar sem sair de casa
(Foto: ArchDaily Brasil/Reprodução)


De um lado, a velocidade exorbitante representada pela rápida propagação por minuto, pela transcendência de fronteiras, pelo alastramento por todos os continentes, pela multiplicação desenfreada. De outro, o intacto, o imóvel, o claustro doméstico, o isolamento e a reclusão na tentativa de evitar qualquer movimento brusco, na supressão do ímpeto, no controle do ambiente. De um lado o vírus, do outro o homem.




Neste cenário pandêmico no qual um vírus mortal é gestado na velocidade interrupta dos nossos movimentos, tornando – nós mesmos – a sua potência, a imobilidade é vista como parte importante do antídoto. Uma imobilidade que nos custa caro, nos encerra em nossos lares e nos obriga a revisar a forma como experienciamos o mundo.



Na época em que toda a métrica espacial é vivenciada como um obstáculo, a imobilidade - não só obrigatória, mas sob risco de vida -, surge, portanto, como um grande desafio. Aquele sujeito contemporâneo liberto de amarras físicas e psicológicas, desafiadoramente livre para moldar-se de acordo com as circunstâncias, vê-se obrigado aceitar a única condição para qual, talvez, não estava preparado. 



Sob a análise deste crescente incômodo fomentado pela supressão dos deslocamentos – seja no devaneio habitual pela própria cidade, seja no atravessamento de fronteiras internacionais -, é possível traçar um interessante paralelo sobre o que representa a mobilidade nos tempos atuais. 



Hoje em dia, essa condição parece significar mais do que mero movimento, ela carrega um simbolismo que, muitas vezes, representa liberdade, aventura, transgressão, tédio ou perigo. É uma forma de estar presente no mundo, essencial para experiência humana atual. 



Isto que podemos chamar de “nomadismo contemporâneo” significa, segundo afirmação de alguns autores como o antropólogo francês Marc Augé ou o sociólogo conterrâneo Michel Maffesoli, um movimento migratório que não é determinado unicamente pela necessidade econômica ou social. O que incita aos deslocamentos constantes é mais um desejo de evasão, uma “pulsão migratória” que estimula o indivíduo a “mudar de lugar, de hábito, de parceiros, e isso para realizar a diversidade de facetas de sua personalidade”. 



Uma situação que pode representar, ainda, a dissolução dos laços entre os cidadãos e suas cidades, na qual o sentimento de pertencimento ao espaço geográfico – originário ou não – já não possui o mesmo valor. A cidade dos nômades é, portanto, aquela definida por fluxos contínuos onde há uma bruta mudança de escala, ela é mundo inteiro, a cidade global.



A pujança e o deleite pelo movimento nos fazem, agora, enfrentar a dificuldade de nos mantermos estáticos em meio a uma pandemia que obriga o isolamento e supressão dos deslocamentos. Neste sentido, fomentado por tal situação, um formato específico de arquitetura vem sendo revisitado. As estruturas portáteis ou nômades surgem neste contexto como uma possibilidade de nos deslocarmos sem, de fato, sair de casa. 



São modelos mínimos que desafiam o cenário da vida cotidiana no conceito de lar, facilitando o deslocamento e o nomadismo das mais diversas formas. Pequenas estruturas onde o espaço interior, antes submetido ao zoneamento, assume agora uma instalação fugaz e individualizada na qual se habita provisoriamente. Parasitando pelo tecido urbano, sua distribuição aleatória implica uma ausência de preocupação quanto a composição de um todo, respondendo autonomamente sobre si mesmo. 



Iñaki Ábalos, arquiteto espanhol, vai além do próprio significado estrutural e arquitetônico de tais formatos afirmando que, em termos sociológicos, essa peculiar forma é convencionalmente descrita como um aumento da mobilidade e, paralelamente, como uma diminuição da importância da família e da razão doméstica. Essa associação tradicional estabelecida entre um lugar, uma casa, uma linhagem familiar e uma localização física em que se inscreve a própria existência. Um formato incita reflexões não somente sobre própria arquitetura, mas também sobre a instituição tradicional da família.




Carregadas de simbolismos do nosso próprio tempo, as estruturas nômades manifestam, portanto, a forma como nos posicionamos no mundo, reforçando nossa temporária hospedagem na cidade global.



Apesar de, para alguns, esse formato parecer estranho e distante, ninguém pode se dizer totalmente alheio a essas estruturas. Somos nômades por essência no mundo globalizado, nossas referências, nossas atitudes, nossas existências parasitam por lugares e situações diferentes – física ou digitalmente. Este modelo não está, portanto, a margem de nós mesmos, mas sim, representa uma forma de antecipar o habitar no mundo hiperglobalizado questionando os limites do público e do privado e trazendo à tona a potencialidade da liberdade espacial, mesmo em tempos de pandemia e isolamento.



Neste sentido, como forma de inspiração, selecionamos a seguir alguns exemplos de projetos que experimentam essa tipologia e nos fazem rodar o mundo, sem sair de casa.




Casa para a mulher nômade / Toyo Ito


(Foto: ArchDaily Brasil/Reprodução)


Neste projeto pouco conhecido Toyo Ito investiga a conduta nômade trazendo como personagem principal para sua narrativa uma jovem mulher. As instalações Pao 1, 1985 e Pao 2, 1989 – ainda contemporâneas - são habitadas pela “mulher independente, ociosa e consumista, um sujeito em si mesmo banal, mas que, com sua mera presença — parasitária —, coloca em questão a trama social japonesa, altamente hierarquizada, sexista e tradicional”. Dentro do tênue envoltório que separa a vida pública da privada, são abrigados apenas os elementos básicos para existência da mulher os quais se afastam da concepção tradicional do funcionalismo doméstico, representando o mais inerente da sua vivência diária (toucador, mesa de telecomunicações e cadeira de descanso). 



Por meio deste modelo, Toyo Ito percorre diferentes pontos de reflexão, desde a inserção das estruturas nômades nas cidades consolidadas, até o perfil deste novo habitante, reforçando a necessidade de se revisitar conceitos tradicionais relacionados ao homem e seu habitat urbano.




Abrigo urbano / Gabriela Gomes


(Foto:ArchDaily Brasil/Reprodução)


Esta escultura habitável questiona as relações entre a fruição artística e a questão habitacional. Feita para ser inserida em espaços públicos, como praças e parques, o objeto experimental combina escultura, design e arquitetura. 


Parasitando de maneira, ao menos, curiosa seu contraste material e formal com o entorno o torna um objeto marcante interferindo também na apropriação urbana do espaço ao seu redor.  



Abrigo da montanha / Lusio Architects


(Foto: archDaily Brasil/Reprodução)



Se o exemplo anterior foi projetado para ser instalado em meio aos centros urbanos, este possui características especiais para vencer as mais variadas intempéries relacionadas ao clima hostil das regiões montanhosas



Com uma combinação de sustentabilidade, materialidade e tecnologia, o abrigo ora se camufla na natureza por sua superfície reflexiva, ora se torna um farol, com luzes e sons que facilitam sua localização, mesmo em meio a um nevoeiro.



Instabilidade e o sujeito móvel


Experenciar o nomadismo é algo que vem seduzido o homem há décadas e se tornando cada mais palpável na medida em que os anos passam e as distâncias são encurtadas. Trinta anos atrás com Toyo Ito e a mulher nômade ou, anterior ainda, no início da década de sessenta com o Archigram e sua “Walking City”, já podemos ver modelos que, antes de representar uma funcionalidade determinada, trazem reflexões sobre a solidez da arquitetura contemporânea frente a este sujeito líquido.



Em se tratando da situação atual, na qual pairamos sobre as incertezas de um futuro que, provavelmente, requererá mudanças drásticas, a ideia de se deslocar pelo mundo em sua própria – e higienizada – casa traz alento e descontração, necessários para sobrevivermos psicologicamente sãos aos tempos atuais. Neste sentido, os exemplos apresentados aqui são hipóteses ou sugestões que, além materializar este fetiche do nomadismo, nos tempos atuais representam também uma solução para nutrir nosso deleite pela vacância em escala global. 




Fonte:

- ArchDaily Brasil


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